Logo no início do isolamento social devido ao avanço do coronavírus no Brasil, ali pelo meio/fim de março, decidimos seguir nossos encontros virtualmente, pra ver se surgiam vontades de criar durante nesses formatos digitais.
Nossa primeira pesquisa aconteceu com o formato de escrita do conto. A cada encontro algum/as integrantes traziam algum texto para ler para o grupo e conversarmos depois. Em seguida, começamos a acessar contos adaptados para a internet, em forma de áudios ou de vídeos – que nos interessava mais que a escrita pura.
Decidimos, então, adaptar um jogo teatral que gostamos bastante, de contagem de estórias: em roda, alguém diz uma frase ou palavra, a ser continuada com mais um pedacinho pela próxima pessoa, e assim por diante. O objetivo é construir uma história com começo, meio e fim. O divertido é que você pode começar pensando em uma narrativa e quando passa pela pessoa seguinte, o rumo muda completamente e surgem elementos, reviravoltas e fins inesperados.
Só que não podíamos nos juntar em roda. Então fizemos umas rodadas do jogo como aquecimento para uma reunião virtual. Não deu tão certo assim, mas foi divertido. Depois da experiência, decidimos criar um documento virtual e rodar o link por uma semana, cada um/a acrescentando algumas frases e passando adiante, num desafio de escrita. O tema escolhido: fim do mundo.
No encontro seguinte, relemos o texto finalizado e gostamos do resultado do exercício. Achamos interessante apresentá-lo aqui como parte do nosso processo criativo. Um exercício entre vários, que calhou de dialogar com nosso sentimento inicial frente à pandemia se espalhando rapidamente pelo mundo.
Gravamos e montamos uma colagem com as diversas vozes do grupo. A capa foi produzida com imagens também enviadas por diferentes integrantes. Você pode escutar o resultado aqui embaixo:
E ler o texto original a seguir:
Jogo de escrita coletiva
FIM DO MUNDO
▪️?▪️
Olá, vocês conseguem me ouvir? Aqui as coisas estão ruins. Estamos precisando de ajuda, nossos corpos não estão suportando mais… pior, eles estão começando a fazer mutações. Acho que é impossível a gente voltar a ser como era antes. É bem estranho ver como as vidas antigas se mesclam com a rotina atual da cidade. Eu vejo as pessoas na rua, mas não sei se elas ainda tem a capacidade de falar.
Droga, eu nem sei se vocês me ouvem. E se ouvem… ainda podem falar por aí?
Em uma mesa solitária no bar estranho de esquina, ela ouviu um eco chegar do fundo do seu copo de cerveja: ainda podem falar por aí-aí-í-í-í…? O mundo de antes tinha acabado e ninguém poderia falar sobre ele. Era algo cruel, mas hoje vivemos assim. E, no entanto, não podia esquecer aquela interrogação tão simples que lhe soava insistentemente e provocava mais o seu corpo do que o álcool diluído no estômago vazio. De repente ela ouviu, lá do fundo do copo uma resposta: eu posso te ouvir.
Um respingo voou do copo e lhe acertou a mão. Na gota de cerveja pode distinguir um rosto risonho e familiar: lembrava Pitico, o vira lata caramelo de sua infância. Fazia muito tempo que não pensava no cachorro, a última vez foi em um dia quente de mudança quando caiu de uma das caixas a foto de sua mãe com Pitico. Sua mãe radiante, sorria como nunca mais a viu sorrir, como nunca mais viu ninguém sorrir.
Adorei o conto! Triste fim…